Olá novamente, pessoal!
Volto mais uma vez de mais um Congresso Internacional de Estudos Japoneses no Brasil, desta vez, realizado em São Paulo, nesta quinta e sexta passadas (27 e 28/08). (XX ENPULLCJ (Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura e Cultura Japonesa) e do VII CIEJB (Congresso Internacional de Estudos Japoneses no Brasil) com o tema “Para além do Japão: Brasil, Canadá e França”.)
Tivemos a participação de algumas ilustres personalidades do estudo japonês na França, e muitas outras palestras interessantíssimas sobre a cultura e língua japonesa.
Sem mais delongas, aqui está o texto completo da palestra que apresentei com minha amiga Patrícia M. Borges.
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POR UMA TIPOLOGIA DOS MANGÁS: investigação dos gêneros e temáticas das histórias
Este projeto insere-se numa temática atual, que é a popularização da estética dos quadrinhos japoneses (mangás) nas várias culturas do mundo. No interior do tema, delimitamos como objeto de pesquisa: Por uma tipologia dos mangás: investigação dos gêneros e temáticas das histórias, a partir da investigação de histórias de mangás e animês do gênero lesbianismo.
Partimos do entendimento de que hoje em dia lidera um equívoco entre muitos fãs e demais apreciadores dos mangás com relação ao gênero de mangás yuri. A questão que entendo ser de fundamental relevância refere-se ao fato de muitas pessoas admitirem o gênero yuri como aquele que tem o sexo como foco principal, e o gênero shoujo-ai, como aquele voltado para definir o romance entre mulheres. O fato é que estes fãs acabam associando as produções de yuri com as de hentai, entendendo que qualquer material que apresente relações lesbianas entre mulheres possa ser chamado de yuri, seja em função da grande quantidade de material disponível aqui no Brasil ou mesmo pela simples falta de conhecimento real do gênero yuri, em função da escassez de material exportado aqui para o Brasil. Como conseqüência de tudo isso, muitas personagens de shoujo mangá são reapropriadas para o universo do gênero hentai pelos fãs que produzem as histórias desse gênero, como também, acabam por limitar ainda mais a quantidade de material yuri vinda para o Brasil em função da grande quantidade de violência e situações humilhantes apresentadas por essas histórias.
Sob meu ponto de vista são muitos os fatores que determinam todo esse mal-entendido, sendo que um deles refere-se ao preconceito existente em nossa sociedade com relação a homossexualidade feminina, entendida como ameaça ou risco para o universo masculino na medida em que são excluídos ou que não ocupam papel ou função privilegiada, até mesmo, não desempenhando nenhuma função útil dentro do universo lesbiano feminino.
Gêneros dos mangás
A pesquisa utilizou-se dos mesmos critérios utilizados no Japão para a classificação dos mangás e suas respectivas denominações determinadas de acordo com os diversos temas abordados pelas histórias, pela divisão de faixa etária e sexo. Algumas dessas classificações em gêneros, entre outras considerações foram descritas pela pesquisadora Sonia Luyten em sua obra Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. Como a própria autora analisou (2000: 48-62): “Tanto os animês como os mangás são criados para um público de todas as idades e, também, para atender a todos os gostos, desde crianças, jovens, até adultos”.
As revistas para os adolescentes, shounen mangá, enfocam temas relacionados ao sexo, brigas, esportes e aos problemas sociais, além de resgatar as características ideais de conduta e disciplina dos japoneses como perseverança, treinamento e coragem.
As revistas destinadas a um público feminino são denominadas shoujo mangá. É comum retratarem temas ligados aos sentimentos amorosos, às angústias e aos sofrimentos das adolescentes num clima totalmente romântico. A maioria das histórias possui como “pano de fundo” ambientes do cotidiano, como também retratam aqueles idealizados pelas mulheres: o típico ambiente romântico dos contos de fadas, com jardins imensos e muitas flores.
Já os termos definidos abaixo, Yuri e Shoujo-ai (referem-se ao romance entre mulheres) são considerados subgêneros do shoujo mangá:
–Yuri (termo originário da palavra “yurizoku”, que significa “tribo do lírio”) é o nome dado aos mangás que abordam relacionamentos homossexuais femininos, e ao contrário do que se pensa, o gênero Yuri não apresenta cenas de sexo explícito, mas apenas, sugere através das imagens uma relação mais “ardente” entre o casal. Quando o Yuri perde o roteiro e vira apenas o sexo é chamado de hentai (pornô). Geralmente esse tipo de produção é voltada para o público masculino que tem fetiches por duas mulheres juntas. Exemplo de mangás yuri: “Strawberry Panic” e “Kannazuki no Miko”.
“Yuri pode ser usado para descrever qualquer série de anime e mangá (ou outras coisas como fanfiction, filmes etc.) que mostram uma ligação emocional intensa, amor romântico ou desejo físico entre mulheres. Yuri não é um estilo limitado pelo gênero [masculino ou feminino] ou idade dos consumidores, mas pela ‘percepção’ do público. Nós podemos, se quisermos, fazer distinção entre shonen Yuri – escritos por homens para uma audiência primária masculina; shoujo Yuri – escritos por mulheres para um público primeiramente feminino; e o que nós do Yuricon gostamos de pensar como yuri puro – escrito por lésbicas para uma audiência de lésbicas… mas todos são yuri, independente de qualquer coisa. Resumindo, yuri é qualquer história com mulheres que amam (ou desejam) outras mulheres”. Ver em: YURICON http://yuricon.com (Neo Tokyo, n.0014).
-Shoujo-ai são mangás com conotação homossexual entre mulheres sem sexo explícito, diferenciando-se do gênero yuri, pelo fato de contemplar relações mais discretas, com pouco contato físico (muitas vezes não chega a ocorrer nem sequer um beijo entre o casal). Podendo ser apenas uma sugestão de homossexualidade ou uma relação com cenas e idéias Ecchis. Normalmente o objetivo desses mangás é mostrar o amor e a fragilidade do casal. Ex: “Maria sama ga Miteru” e “Simoun” (revista Yuri Hime).
Ainda, existem dois termos que circulam muito pela internet e que se referem ao romance entre mulheres: yuri e shoujo-ai. Algumas pessoas no Ocidente, seguindo a mesma linha do que é feito com yaoi, ainda tendem a associar yuri a histórias que tenham no sexo seu foco principal e shoujo-ai (shoujo = menina/moça; e ai = amor) ao romance e ao sentimento.
Outra questão que deve ser ressaltada diz respeito ao termo akogare, que significa adoração. Há muitas situações nos mangás com situações em que uma personagem se distingue, destacando-se e despertando adoração em outra personagem. Fato comum nas histórias de shoujo-ai, como; “Utena, Maria-sama”, “Card Captor Sakura”, mas também está presente em séries como “Anatólia Story”. A veneração, admiração e mesmo submissão aos superiores é traço da cultura japonesa, e no caso do material shoujo, a linha que separa a adoração e o amor ou paixão é bem tênue. O akogare está presente na relação “senpai/kouhai”, isto é, entre o mais antigo ou veterano em uma organização ou escola e o menos graduado ou mais jovem.
Para aprofundamento dos variados gêneros houve a necessidade de recorrer a outras referências bibliográficas já que a quantidade de temas abordados pelas histórias dos mangás corresponde a um universo quase ilimitado de publicações. Assim que encontramos as categorias abaixo, utilizadas para nomear os gêneros que tratam de histórias com relações homossexuais.
Para a definição do gênero hentai em Kouhaku (http://www.kouhaku.com.br/kouhaku/ko.php Acessado em: 07/05/2009) encontramos:
–Hentai, em japonês pode ter vários significados, entre eles, anormal e pervertido sexual. Isto porque no Japão, o sexo é um tabu fortíssimo e qualquer relação feita a questões sexuais é vista com extremo preconceito. Sendo assim, o gênero hentai é dividido em duas categorias: a categoria hentai como anormalidade, e a categoria hentai como normalidade. O termo também é utilizado para classificar os mangás sob dois aspectos: o primeiro, comporta qualquer conteúdo fora da “normalidade”; o segundo, usualmente conhecido como “pornô” ou “H-manga”, comporta situações de masturbação ou realização de fantasias não muito usuais. Também na categoria hentai (como anormalidade) se encaixam vários gêneros relacionados à opção heterossexual ou homossexual, sendo ou não explicitas e sexuais. Abaixo constam alguns exemplos:
-Ecchi é o nome dado aos mangás com conotação sexual sem sexo explícito. Alguns Ecchis só apresentam sugestões sexuais. Ecchi é a pronúncia japonesa para H de Hentai, ou seja, um hentai leve.
–Boys Love (BL) designação para mangás com relação homossexual entre homens, geralmente com grande quantidade de cenas de sexo. Atualmente no Japão, todo mangá com relação homossexual masculina é denominado de “Boys Love”. Quando se diz, “Boys Love” nos países ocidentais, significa associar os mangás com homossexualismo entre homens que apresentam cenas de sexo explícitas, mas que ainda preservam todo o romantismo, o enredo e a história. Tendo normalmente o amor presente.
-Shounen-ai é um gênero muito usado fora do Japão para mangás com conotação homossexual entre homens sem sexo explícito. Podendo apenas passar uma pequena impressão de homossexualismo ou ser Ecchi. Shonen-ai traduzindo para o inglês seria “boys love”. BL fora do Japão é muito chamado de Yaoi, porém yaoi é o termo para um mangá feito por hobby e vendido sem fins lucrativos usando personagens de outras histórias que lhe pertencem ou não, as famosas doujinshis (são doujinshis com conotação sexual e, às vezes, contendo conteúdo sexual forte. Muito conhecido pela relação homossexual masculina e por isso confundido com Boys Love). Enfim, o termo yaoi é para histórias não-oficiais e geralmente se trata de hentai (pornô). BL pode ser classificado como hentai, Boys Love Hentai, quando o conteúdo se resume ao sexo por ele mesmo.
De acordo com os exemplos de gêneros de mangás acima, pode-se perceber que há uma divisão entre as histórias que mostram ou não cenas de sexo explícitas tratando-se de relações homossexuais tanto entre homens como também entre mulheres, mas também, que todo gênero chamado de hentai serve exclusivamente para caracterizar as histórias que apresentam cenas de sexo explícito.
Diante desse universo de classificação e ou divisão dos mangás em gêneros é que nos ocorreu identificar quais seriam as origens ou bases determinantes desse sistema classificatório, e, portanto, quais os critérios de classificação utilizados pelos japoneses para se determinar cada gênero de história.
Com base nesta compreensão, foi feita uma revisão bibliográfica na área da psicanálise, da biologia e da botânica, permitindo-nos destacar as seguintes referências: Freud (1972; 1974; 1976), Foucault (1970), Alan Bewell, Lineu (1735), Erasmus Darwin (1799), entre outros.
Estas leituras iniciais qualificam o problema de pesquisa, gerando uma série de questões que não ousamos responder na sua globalidade, mas que devem ser retratadas por sua importância para a formulação do problema do qual partimos. São elas:
-O quê propriamente é considerado como aspecto fundamental para se determinar e classificar as diferenças sexuais?
-Quais a relação existente entre gênero e sexualidade?
-Há relação entre as diferenças sexuais e o sistema simbólico próprio de cada cultura?
Em (GUACIRA, 2005) encontramos subsídios teóricos para o entendimento de gênero como um padrão de classificação determinado de acordo com as necessidades culturais de se acentuar as diferenças percebidas entre os sexos. E que os traços da feminilidade ou masculinidade são acentuados e variam de cultura para cultura, ou seja, o conceito de feminilidade ou masculinidade é sempre uma construção cultural em contínuo estado de transformação. Sendo assim, a questão agora seria compreender quais seriam as instituições detentoras do poder nas sociedades antigas que levaram a definir as classificações dos sujeitos e também as regras das práticas sociais. Assim que encontramos os representantes da Igreja e do Estado, médicos, pensadores e moralistas, entendidos como autoridades eleitas por definir e ditar juízos de valores a expor suas opiniões com base nos seus ideais de mundo.
Vimos que foi a partir do século XIX que a compreensão da homossexualidade nas sociedades ocidentais era definida por uma prática sexual anormal que se dava entre parceiros de um mesmo sexo. Considerada sodomia e pecado, a homossexualidade também foi uma questão que ao longo dos anos viveu em constantes transformações e que nos levou a formular determinados juízos de valores pelos quais nos deparamos hoje em dia.
Movimentos articulados às questões sexuais a partir do século XX (a exemplo, tivemos em 1966, o movimento feminista, atualmente temos a “Parada Gay”, na Avenida Paulista, em São Paulo) também tiveram um impacto profundo nas sociedades e foram responsáveis por inúmeras transformações acerca do espaço social e cultural conquistado pelos proclamadores da homossexualidade.
Outra forma de expressão cultural e artística em que vemos essas questões da homossexualidade alcançarem visibilidade social e conquistarem espaço na sociedade se deu através da repercussão dos mangás de gêneros lesbianos promovida pelos mangakás e pelos autores japoneses. Este é o caso de Ryohko Yamagishi, autora de “Shiroi no Heya no Futari – 1971”; Ryoko Ikeda, autora da “Rosa de Versalhes – 1972” e “Iniisama E – 1974”, onde a autora questiona os papéis de gênero, retrata com muita ternura o romance entre parceiras do mesmo sexo. Em “Iniisama E”, tem-se um relacionamento entre duas adolescentes, Nanaka & Rei, em uma escola feminina de elite. Como não é raro de se estranhar, a questão é retratada em um ambiente de muita angústia, adultério, incesto, uso de drogas e, é, claro, tragédias. que é cronologicamente posterior a ajudaram a construir esse universo.
Por último, a questão que nos levou a definir nosso problema de pesquisa: qual seria o caminho adequado para se discutir a problemática do mal-entendido em torno dos gêneros de mangás lesbianos e o enfoque mais pertinente que nos ajudará a entender o homossexualismo como uma determinação inconsciente, inata e natural?
Sobre a definição dos conceitos de homossexualidade e heterossexualidade criados na Hungria e na Alemanha, no século XX, Michel Foucault escreveu que “A homossexualidade apareceu como uma das imagens da sexualidade ao ser reduzida da prática da sodomia a uma espécie de androginia interna, a um hermafroditismo da alma. O sodomita era um pecador relapso, enquanto o homossexual é hoje uma espécie” (ROUDINESCO; PLON: 351). Em favor dessa teoria que entendia a homossexualidade como uma espécie inata ou natural, diversos estudiosos opuseram-se, sustentando a homossexualidade como uma inversão sexual, fruto de uma anomalia hereditária, psíquica, mental ou de natureza constitucional, um distúrbio de identidade ou da personalidade. Somente na década de 1970, com os historiadores Michel Foucault e John Boswell e pelos grandes movimentos favoráveis a liberdade sexual é que a homossexualidade deixou de ser vista como uma doença mental para ser encarada como uma prática sexual distinta, que segundo Freud remetia a uma escolha do inconsciente, ligada à castração e a renegação (p.352).
Em 1915, Freud ainda escreveu Três Ensaios onde expressou sua hostilidade a qualquer forma de diferencialismo e discriminação acerca da homossexualidade, firmando que a investigação psicanalítica, “opõe-se com extrema determinação à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo particularizado.”
A questão da distinção dos gêneros e da diferença dos sexos nos levou então, a compreender sob o ponto de vista da botânica, as atribuições e referências admitidas para a questão da homossexualidade, com base no estudo das características sexuais das plantas.
Assim que em 1799, encontramos a obra de Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, publicada em francês, com o nome de The Loves of the Plants, na forma de um poema erótico-botânico que se tornou uma das principais obras de divulgação popular do sistema de Lineu através de analogias da vida sexual das plantas com a dos humanos. Entre outras considerações, Lineu descreveu que “o número dos estames era considerado como o número dos machos; estames inférteis eram chamados de eunucos; os pistilos femininos podiam ser ‘adúlteros’, ‘poliândricos’, e assim por diante, o que fornecia um amplo material metafórico para as mais fantasiosas situações sexuais”. Lineu ainda dizia e entendia as flores hermafroditas ‘pistilo e estame na mesma flor’, como “esposos que dormem na mesma cama”; e as plantas que possuem flores masculinas e flores femininas, como “esposos que dormem em camas separadas”.
Entre as plantas em que os esposos dormem separados, Lineu incluiu três classes: a monoecia, entendida como “flores masculinas e femininas na mesma planta”; a dioecia, como “flores masculinas e femininas em diferentes plantas”; e a polygamia, como “flores hermafroditas juntamente com flores masculinas e femininas na mesma espécie”.
Evidenciando desta forma, que a botânica, na visão de Alan Bewell, influenciou a emergência de uma “política sexual” na época iluminista, no final dos setecentos. Pela primeira vez, em comparação com as plantas, a vida sexual humana adquiria a feição de uma instituição social. A botânica permitia que se falasse sobre um assunto até então relegado para fora da vida pública: o sexo.
A contribuição desse sistema de classificação das plantas para este estudo foi evidenciar que as características homossexuais dos seres orgânicos já demonstravam seu caráter natural e hereditário, e longe de ser considerada como uma doença mental ou mesmo psíquica, a homossexualidade podia ser entendida desde o final do século XVIII como uma determinada característica sexual distinta, portanto, distante de ser considerada uma questão preconceituosa.
BIBLIOGRAFIA
LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade – as múltiplas “verdades” da contemporaneidade. UFRGS, 2005.
Yuri & Shoujo-Ai. Neo Tokyo, n.0014
ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.